Já um dia fui gerente (quase dono) de um café. Pelo menos, durante uma manhã inteirinha, ele foi meu. E nem precisei de o comprar: a chave foi-me oferecida quase em acto de alívio. Da mesma forma como a devolvi. Se eu... nem uma bica para mim próprio sabia tirar!!!
Era inverno em Montalegre e eu tinha calcorreado mais de mil quilómetros para a 2ª Feira do Fumeiro. Foi lá para as bandas de 1992. Desafiara a vir comigo o José Quitério de quem prezo amizade e nutro admiração. E por aí acima foram aquelas duas almas, movidos pela curiosidade de saber como o presunto (além de sabor, textura e volúpia) poderia ser modo de vida e subsistência de famílias. Ainda no princípio, a feira de reduzidas dimensões não tinha marcadas vocações de cartaz turístico, embora se acreditasse como chamariz de visitantes. Gente de passagem, porque os parcos quartos de pensão disponíveis não relevavam pelo conforto, nem desafiavam a ficar...
Era uma feira ingénua mas sobrava-lhe sinceridade, alegria e afectos. Sem pôr em causa a qualidade dos fumados e outros derivados do cerdo, marcou-me mais o acolhimento, o calor das palavras, os copos conversados noite a fio, o meu reencontro com o Padre Fontes, o conhecimento do Orlando Alves, umas batatas e couves com um presunto cozido que comemos num restaurante que não sei se ainda há... e a tal chave do café que, sem que me conhecessem de lado algum, me entregaram para que dele dispusesse. E não é todos os dias que nos oferecem um estabelecimento de comidas e bebidas... Mas é melhor eu explicar a histórias antes que vossas senhorias se ponham para aí com suposições menos fundadas...
Nessas alturas, um repórter de rádio, mais de que se assemelhar a um saltimbanco, era similar um “faz tudo”. Para uma emissão de duas horas em directo, chegava-se sozinho com uma maleta de microfones, auscultadores e uma caixinha milagrosa, de recente fabrico, que permitia ligar aquela tralha toda a um telefone desses domésticos. E depois era sou inventar uns tipos para ouvir e umas histórias para contar... e estava feita a rádio, fosse um Montalegre ou na ilha do Corvo. Facilitava no entanto saber falar com as pessoas... porque andam por aí umas sumidades que, quando os retiram do convívio dos políticos que transbordam vontades e interesses de dizer coisas, ficam desamparados, desasados mesmo! Culpa do populares, dizem eles, quando não conseguem que o cidadão comum - que está na sua terra, com as suas coisas e os seus dias - lhes dê importância e lhes ligue alguma. Aí, mascaram a falta de capacidade de conversa com uma análises demencial acerca do introspectivo do povo, que “é fechado” e nada diz. Quando foram eles que não conseguiram estabelecer fala e conversa... Só conseguem ouvir ministros à porta de São Bento ou treinadores ávidos de zurzir num árbitro qualquer.
E se eu contasse a história do café em vez de estar para aqui com estas filosofia da treta? Bem... lá vai... Era uma sexta feira quando arribámos a Montalegre - eu e o Quitério, como lá atrás já ficou dito. Preparei as coisas e fiz um programa de rádio no sábado. Esse foi fácil, porque a feira estava a funcionar, abundava por lá mão de obra vocal e as conversas da noite anterior (até quase à madrugada) tinham preparado o terreno, limado timidezes e outras hesitações. Parecíamos quase todos íntimos e a coisa fez-se. O problema era o dia seguinte, o Programa começava às 7 da manhã, era difícil convencer os companheiros da aventura nocturna para jornada tão madrugadora em dia de descanso. Pareceu interessante que a função se cumprisse num café onde era suposto as pessoas estarem mais descontraídas e com palavra mais fácil. Mas não havia nada aberto aquela hora num domingo de manhã... Surgiu então a ideia do estabelecimento defronte da antiga cadeia - anos depois recuperada para hotel acolhedor de Montalegre.
Já não me lembro quem serviu de cicerone, fiador ou avalista da conversa com o homem do café. Recordo apenas que o proprietário concordou em deixar-me abrir banca na sua loja. Subsistia apenas um pequeno problema: no sábado ele tinha um casamento, não sonhava a que horas se iria deitar e muito menos se imaginava às 6 da manhã a abrir a porta para que um qualquer de Lisboa fosse debitar umas quantas larachas...Lá no fundo, ele suspeitava que - por muito más que fossem as palavras do tal repórter - sempre trariam algum interesse para a divulgação da terra. E divulgação, aos olhos de um comerciante, quer dizer mais clientes. Coisa a que ele não era avesso. Mas... estar ali às 6 da manhã de domingo, depois de banquete nupcial, festa rija, cabeça mole e alguns desvarios? isso é nem pensar...!!!
- Ouça lá, você pensa que eu sou maluco para vir para aqui às seis da manhã, depois de um casamento? Olhe, está aqui a chave, amanhã abra o café e amanhe-se.
E foi assim. Dia seguinte, ainda escuro, ainda frio, abria eu a porta, ligava as luzes e montava o estaminé. Lá mais para a sete da matina, começaram a chegar os meus companheiros de infortúnio - sofrido, a acreditar nas caras que me foram entrando porta adentro, disfarçando as pragas que me rogavam com um esfregar de mãos e a frase sacramental:
- Isto é que está um frio hoje...!!!
Nunca mais consegui perdoar ao Padre Fontes aquelas efabulações acerca de mezinhas, medicinas populares e chá diversos, quando ele nem uma máquina de café sabia ligar. E tanto que apetecia. Bem olhávamos para ela, mas não a demovíamos da sua metálica imobilidade.
Final da história, logo que pude devolvi a chave ao dono, o Padre Fontes aprendeu – daí a uns aninhos – a tirar café, o Zé Quitério continua meu amigo (daqueles que não precisamos de ver todos os dias) e eu não mais parei de ir a Montalegre. Mas continuo sem saber como lidar com máquinas daquelas...
1 comentário:
Deliciei-me com a história. Chamou-me a atenção exactamente porque ando a pensar visitar Montalegre, talvez um dos poucos sítios que ainda não conheço deste nosso Portugal que tanto amo.
Parabéns pela continuação deste blog onde venho várias vezes "matar saudades". :)
Um abraço
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