04 março, 2007

SABORES PASSEADOS, (4)
- ideias ralas no Congresso das Açordas

CONGRESSO DAS AÇORDAS - Portel, Março de 2007
Condenar à morte
o país rural...

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Nunca se falou tanto de gastronomia nem se referenciaram tantos gastrónomos... mas eu encho-me de dúvidas quando escuto certas perorações acerca da declaração, por decreto, dos saberes e dos comeres como património cultural português. Não sei mesmo se ainda vamos a tempo de atalhar ou inverter o sentido das coisas: porque arriscamos que a nossa gastronomia um dia destes seja arquivada na gaveta do denominado património imaterial. Não por falta de receitas ou de esforço em as recolher, estudar e testar, mas por ausência de produtos nossos, cultivados nos nossos campos, criados com o nosso clima e as nossas especificidades agro-ambientais.

Há uns três ou quatro anos, preparava eu uma emissão em directo para as bandas da Vidigueira. Ouvi chamarem pelo meu nome com uma voz que me era familiar, olhei na direcção do vocativo e reconheci o Vilas, mestre pintor de tela e pratos, bom conversador, bom copo e bom garfo, com pouso certo e porto seguro lá para as bandas do Algarve. Disse-me que vinha a ouvir a rádio, que tinha sabido que eu estava por ali e decidira ir cumprimentar. Mas o que é que aquela alma de cristo andava a fazer pelo Alentejo? Lá me foi contando que cada vez era mais difícil arranjar grão para a sopa de rabo de boi – especialidade da casa. “O que anda aí pelo mercado é da Turquia e não coze como o nosso”. Tinham-lhe dito que ainda havia quem fizesse grão no Alvito, e ele veio por aí acima, ás carreiras, a ver se consegui algum.

Porque, por muito boas que sejam as mão de uma mulher que sabe amassar e por muito sábias que sejam as artes de levedar, o que não falta por aí é trigo com sabor a outras paragens. E ainda nem chegámos aos transgénicos...

Nestas e noutras coisas, sempre gostámos de começar pelo telhado. E assim, ao mesmo tempo que arriscamos a perder muito do património de sabores da nossa cozinha porque não há produtos da nossa terra disponíveis para a confeccionar, simultaneamente, estamos a condenar à morte o país rural. Uma vezes por desconhecimento, outras por desleixo, outras porque o interior não dá votos já que os eleitores se amontoam no litoral, outras porque faltam as medidas de discriminação positiva onde sobram imposições legais, regulamentos comunitários ou dislexias jurídicas de paróquia.


Continua

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