Velas, 15 de Maio de 1997
É já em Velas de São Jorge que te escrevo esta carta. Desta vez não fui ao Pico, passei-o, de longe, divisando-lhe as casas numa manhã de brumas, tentando adivinhar o cume da ilha por entre um colar de nuvens que ora encobria ora deixava a descoberto aquela ponta de seio que brotou da última erupção.
Eram umas nove da manhã quando, com o meu séquito de maletas, desemboquei no cais da Horta. Àquela hora pleno de movimento, com o Cruzeiro do Canal a arribar, cheio, da Madalena do Pico.
O Lusitânia fez-se ao mar com cinco minutos de atraso em relação às previstas nove e meia. Como que para se despedir do Faial e nos deixar na mente uma visão panorâmica da Horta... uma rotação de quase 180 graus até apontar à saída do porto.
A cidade, primeiro, a ilha toda, depois, vai-se convertendo em visão cada vez mais distanciada que contemplo à popa.
Galgadas algumas ondas, para trás fica a marina. E, no anfiteatro que é aquela encosta da ilha, as igrejas (casamento, a um tempo imponente e agressivo, do branco da cal e do negro da pedra de lava) pontuam o horizonte.
Passado o Monte da Espalamaca e a praia do Almoxarife, bem na ponta, o farol da Ribeirinha...
No outro lado, quase ia a dizer... na outra margem do mar, avisto já a Madalena. E durante uma meia hora navegamos à vista do Pico. Quase até defronte de São Roque.
A força das ondas, o cheiro do gasóleo e os balouços do Lusitânia vão fazendo alguns estragos entre a vintena de passageiros. Borda fora...
Apesar da chuva miudinha, dois holandeses não abandonam a popa e a contemplação do mar. Vão também para São Jorge. Um deles surpreende-me com um português de toque brasileiro. Acha que o mar está mau. E eu falo-lhe de como o vi, há uns sete anos, numa maré de Agosto que fez voar telhados e árvores no Faial.
Navegamos no Canal de que falava Nemésio. E começamos a apontar para São Jorge - mais meia hora e estamos em Velas.
Já em cima do cais, tempo apenas para ir ao hotel deixar as malas e ala para as Manadas, que o Espírito Santo está aí, no seu misto de devoção, festa e partilha. Meia ilha acorreu à Função. As mesas estenderam-se pelo caminho que ladeia a igreja, até ao Império.
Com o apetite que o mar me abriu, atiro-me às sopas e à carne. Ao meu lado, alguém se queixa que viemos tarde e já se não vislumbra o fígado. E, sempre com o mar à vista, escorrem o vinho e as conversas.
Para ti vão estas linhas que escrevo aqui na Biblioteca de Velas. Lembrando ausências e desejos, mas querendo compartilhar também gozos e deslumbramentos. Se estivesses aqui, amanhã levava-te a outra Função nas Fajãs. Assim, tens de te ficar pela imaginação e pelo relato.
Eu fico à espera que a noite venha... para adivinhar a ilha defronte no pontuado das luzinhas que - dizem-me aqui - servem para que os ilhéus se não sintam sozinhos: vendo as luzes da ilha à frente, no caso o Pico, parecem mais acompanhados neste meio de Atlântico.
Domingo, já sabes: entre as 11 e as 13 (horas de Lisboa) vai ser a emissão do Feira Franca em Velas. Como eu gostava que ouvisses...
Adeus. Recebe as minhas saudades. Eu aguardo os teus recados. |